Update 1 – Caminhos de Santiago
Aqui fica um primeiro update destes dias pelos Caminhos de Santiago (caminho francês).
Dia 12 de Novembro (dia 1 Camino)
Quero agradecer às várias dezenas de pessoas que ontem e hoje me enviaram mensagens / emails a desejar boa viagem. Não imaginam o impacto que estas mensagens têm. Um sincero obrigado.
Hoje foi dia de viajar até norte de Espanha para amanhã começar o Caminho de Santiago. Vim calmo, mas confesso que estou “cansado” e com vontade de desligar a net e o telemóvel, algo que irá acontecer à 00h de hoje. Amanhã irei até o ponto de partida e começo a caminhada em si.
Não irei dar noticias diariamente, afinal, esta é uma viagem de “imersão pessoal”. Vou tentar manter-me o mais longe possível da minha caixa e-mail, redes sociais e telemóvel. Irei em todo o caso registar os momentos no meu bloco de notas e darei notícias quando achar que o devo fazer. No final, fica prometido, publicarei o dia-a-dia, mas para já, durante a viagem, farei o caminho sem compromissos nem amarras. Tenho a certeza que compreenderão.
Dia 13 de Novembro (dia 2 Camino)
Tenho tantas dores nas pernas que nem sei por onde começar. Não me consigo mexer…
Ontem tive um percalço: Quando ia despedir-me do meu amigo Pericles para começar o caminho e fazer Oviedo-León, ele avisou-me que tinha acabado de ver nas noticias que as condições não eram as melhores pois para além de alguma chuva, havia neve na cordilheira por onde teria de passar, tornando este trajeto muito perigo. Um homem morreu há pouco tempo. Como sou maluco, mas não sou tolo, como se diz na minha terra, decidi fazer esta parte do percurso de autocarro para fugir ao perigo e começar logo depois. “Perdi” alguns km mas como isto também não é uma competição, antes algo “meu”, aceitei. Mais km, menos km, afinal com estas coisas não se brinca. Dito e feito. Péricles deixou-me na estação e fiz uma parte de autocarro, começando a caminhada um pouco antes de Léon.
Hoje sai logo pelas 8h e fiz mais de 35km. Tenho tantas dores que nem imaginam… costas, pés… A minha mochila está, julgo, excessivamente pesada. Tenho de me livrar de algum material rapidamente.
Sei que não me preparei (de todo) fisicamente, mas estou agora a pensar que isto vai ser, verdadeiramente, duro…
Dia 14 de Novembro (dia 3 Camino)
Passou por mim ontem no caminho. Fui encontrá-lo no albergue ao final da tarde. Chama-se Roberto, é brasileiro. Não tem idade para ser meu pai, mas sim primo mais velho. Hoje caminhámos todo o dia juntos. Ao fim de muitas horas de caminhada, algumas em silêncio absoluto, contou-me de livre vontade que depois de dedicar grande parte da sua vida a uma empresa foi despedido. Perguntei-lhe se estava a fazer a viagem para esquecer o passado e mudar de vida ao que ele me respondeu:
“Na verdade estou a fazer a viagem para aprender a confiar na vida. Há certamente algo melhor à espera”.
Também eu. Na vida, nas decisões, nos porquês, nos “sins”, mas também nos “nãos”. Tinha mesmo de me encontrar com ele aqui a Caminho de Santiago.
A todos os corações partidos, almas meio-cheias e a todos os que estão em tempo de mudança… confiem. Com força, determinação, trabalho e sobretudo com muito amor… as coisas vão acontecer. E mudar. Confiem.
Dia 15 de Novembro (dia 4 Camino)
15 Novembro, 13h42 – Mensagem de voz (transcrita para texto seguidamente):
“As dores são imensas. Não sinto dores localizadas como nos dias anteriores. Não sei o que se passa, mas do tornozelo para baixo tudo dói em ambas as pernas. Arde. Faltam 7 km para chegar a ‘El Acebo’ uma pequena localidade onde vou pernoitar. Não há nada mais pelo caminho, apenas ‘carreiros’ de terra batida com muitas pedras. Estou sozinho. Só espero que o albergue tenha aquecimento no quarto e um bom duche. Estou ‘morto’. Já andei perto de 22km. Subi aos 1.500m, acabei de passar a famosa ‘Cruz de ferro’, falta a descida. A garrafa de água que trazia acabou e tenho sede.
Estranho porque de manhã tinha apenas algumas bolhas nos pés o que era aceitável.
Nos ombros, de carregar a mochila, a dor tornou-se insuportável. Só quero mandar isto fora.
Há 3 horas que venho a caminhar com os dentes cerrados. Passo após passo. Há pouco mais de 1 hora a dor aumentou de intensidade e fiquei com as lágrimas nos olhos.
Mas que raio se passa?!
Os meus pés movem-se automaticamente numa cadência própria. Não tenho ‘coragem’ de os mandar parar e tirar as botas para ver o que se passa porque não sei se consigo depois retomar. Estão dormentes. Na última meia hora comecei a sentir tanta dor que entrei num estado onde já quase não sentia dor. Estranho, eu sei. Caminhava mas a minha mente não estava aqui. Estava longe. Anestesiado só consegui pensar em pessoas, lugares, sentimentos. Em coisas boas, em coisas menos boas. Em decisões erradas, em decisões certas. No passado e no futuro. Tudo. Quando chegar ao albergue vou mandar um abraço a algumas pessoas especiais para mim. Estava no fisicamente no ‘camino’ mas não estava verdadeiramente a caminhar. Apesar de tanta dor física, isto fez-me bem. Estou mais leve e com algumas respostas.
Agora, voltei a ‘cair em mim’ e decidi gravar esta mensagem de voz no telemóvel. Tenho dores. Muitas. Mas, estou a pensar que talvez seja isto que o Caminho de Santiago nos dá: A oportunidade de através de um sacrifício imenso e dor física, refletir e curar a alma”.
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2 horas depois cheguei ao albergue em ‘El Acebo’. Vim devagar e, de facto, a coisa não está bonita: 2 unhas que saíram fora, uma em cada pé. Tenho mais bolhas no pé esquerdo e uma boa parte do pé direito ficou sem pele. As bolhas antigas com esta subida e descida de hoje… deu nisto. Mas, amanhã quando chegar à próxima cidade vou à farmácia. E de resto… é isto. Amanhã é outro dia, vamos em frente com força! Nada se faz sem sacrifício. E força de espírito. Vou lá chegar.
Dia 16 Novembro (dia 5 Camino)
Chama-se Kevin, é irlandês e tem 54 anos. Vê- me a entrar no quarto do albergue com muitas dores e pergunta o que se passa. Fala um inglês um pouco vagaroso e enrolado. Oferece-me pensos rápidos e pomadas. Pouco depois pergunta se quero comida do restaurante mais próximo para eu não ter de andar mais. Recuso gentilmente para não o incomodar. Diz que só esteve em Portugal 1 vez e para ver um jogo de futebol há 20 anos, quer voltar um dia. Conta-me também que já fez partes do ‘camino’ noutros anos mas que agora está a fazê-lo do início ao fim (+800km). Vejo que tem uns golpes na cabeça, pergunto o que se passou. Diz-me que ontem, estava sozinho a descer a montanha, desequilibrou-se, caiu e ficou ferido. Mas continuou. Disse-me depois que nada o vai fazer desistir de chegar a Santiago.
O Kevin tem esclerose múltipla e quer mostrar que é capaz de fazer o caminho.
Estou… sem palavras.
Dia 17 Novembro (dia 6 Camino)
“Peregrinar es creer y rezar con los pies”
150km já estão! Estamos na ‘luta’.
Dia 18 Novembro (dia 7 Camino)
Dia de subir (e descer) outra montanha de 1.400m. Um dia complicado e muito curto ou muito longo dependendo da opção que fizesse, porque a parte final do caminho (últimos 15km) não haviam albergues disponíveis o que me ia obrigar a parar antes ou a andar imenso. Por sorte conheci 2 espanhóis pelo caminho, também peregrinos e muito simpáticos por sinal, meti conversa com eles e estavam com o mesmo problema – 1) andar pouco; 2) andar 40km 3) Encontrar um “canto” (que não albergue) onde dormir pelo caminho.
Fizeram alguns telefonemas e conseguiram encontrar uma “casa rural” mais perto. Terminámos o dia numa casa no meio do nada a jantar a brindar ao ‘Camino de Santiago’ com licor de café caseiro.
Dia 19 Novembro (dia 8 Camino)
Tenho estado a caminhar entre 6-9h por dia. Para além dos problemas nos pés ainda não resolvidos, os meus músculos estão cada vez mais cansados. Tem sido, confesso, penoso fisicamente. Adicionalmente hoje, pela primeira vez, tive a companhia da chuva nas últimas 4h de caminhada. Parece que veio para ficar. A lama que se forma ao longo do caminho torna muito desgastante a viagem… Mas vamos lá chegar!
Para compensar tenho conhecido, todos os dias, pessoas muito interessantes e com histórias fantásticas. Já fiz novos amigos do Brasil, EUA, Irlanda, Canadá, Hungria e Espanha. Há uma grande entreajuda e espírito de grupo entre todas as pessoas, mesmo sem nunca se terem visto. O ‘camino’ também é feito de convívio, partilha e espírito aberto entre peregrinos. Aqui conhecemos o que de mais genuíno há nas pessoas e isso é único.